Ordenação feminina entre os Episcopais Anglicanos no Brasil
* Do: FILOPOIESIS
A cada dia o estudo do sagrado e de suas hermenêuticas possíveis tem ganhado cada vez mais destaque nos meios acadêmicos, isto porque, o campo religioso, é também um espaço de construção, legitimação e exercício do poder. Se não buscarmos compreender as estruturas de poder que atuam em nossa sociedade, corremos o risco de não compreendermos uma parte significativa do capital simbólico que constrói e referencia os usos e costumes das comunidades que pesquisamos, tornando inócua nossa análise histórica e sociológica.
O estudo sobre a ordenação de Sacerdotisas Anglicanas no Brasil nos remete inevitavelmente á relação tríplice entre história, religião e gênero. O lugar que não apenas a mulher, mas que o feminino ocupa no imaginário simbólico do cristianismo tem sido uma herança incontestável para designar e legitimar o lugar da mulher na sociedade ocidental.
Entendemos que no cristianismo e na maioria das religiões monoteístas como o Judaísmo e o Islamismo, têm na figura masculina sua principal representação como, por exemplo, Jesus, Iaveh e Alah. Desse modo, seus representantes legítimos os profetas e sacerdotes responsáveis por mediar a relação entre as pessoas e o sagrado também são, via de regra, do sexo masculino.
Muitas vezes as tentativas de ocupação desses espaços por mulheres foram entendidas como transgressão e profanação do sagrado acarretando-lhes penas que iam desde o despojamento até torturas físicas.
Durante milênios, as sociedades mantiveram a idéia de que os homens, por natureza, são propensos a presidir nas esferas intelectuais, econômicas e políticas. E as mulheres são, por natureza, feitas para dar à luz aos filhos dos homens, e se sacrificarem a serviço dos demais. Um resultado lamentável foi o silêncio e a invisibilidade das mulheres nas esferas públicas. Isto não significa que não foram importantes: seu trabalho de nutrir e formar as crianças tinha um forte impacto nas sociedades. Também não significa que não estiveram no centro dos acontecimentos, ou que não falaram, ou que não tinham influência na cultura e na sociedade. Porém, com algumas exceções, o seu trabalho e suas palavras não foram considerados importantes devido à sua posição subordinada. Essa organização das sociedades também prevaleceu na Igreja.
O estudo sobre a ordenação de Sacerdotisas Anglicanas no Brasil nos remete inevitavelmente á relação tríplice entre história, religião e gênero. O lugar que não apenas a mulher, mas que o feminino ocupa no imaginário simbólico do cristianismo tem sido uma herança incontestável para designar e legitimar o lugar da mulher na sociedade ocidental.
Entendemos que no cristianismo e na maioria das religiões monoteístas como o Judaísmo e o Islamismo, têm na figura masculina sua principal representação como, por exemplo, Jesus, Iaveh e Alah. Desse modo, seus representantes legítimos os profetas e sacerdotes responsáveis por mediar a relação entre as pessoas e o sagrado também são, via de regra, do sexo masculino.
Muitas vezes as tentativas de ocupação desses espaços por mulheres foram entendidas como transgressão e profanação do sagrado acarretando-lhes penas que iam desde o despojamento até torturas físicas.
Durante milênios, as sociedades mantiveram a idéia de que os homens, por natureza, são propensos a presidir nas esferas intelectuais, econômicas e políticas. E as mulheres são, por natureza, feitas para dar à luz aos filhos dos homens, e se sacrificarem a serviço dos demais. Um resultado lamentável foi o silêncio e a invisibilidade das mulheres nas esferas públicas. Isto não significa que não foram importantes: seu trabalho de nutrir e formar as crianças tinha um forte impacto nas sociedades. Também não significa que não estiveram no centro dos acontecimentos, ou que não falaram, ou que não tinham influência na cultura e na sociedade. Porém, com algumas exceções, o seu trabalho e suas palavras não foram considerados importantes devido à sua posição subordinada. Essa organização das sociedades também prevaleceu na Igreja.
Segundo a teóloga e historiadora Elizabeth S. Fiorenza[1] no final do século XIX e até metade do século XX, no contexto da primeira onda do feminismo, eclodiram nas Igrejas tanto católica quanto protestante, incontáveis movimentos e associações de mulheres. Segundo ela, no arco de múltiplas e distintas posições, é possível distinguir duas maneiras básicas de respirar na Igreja os ares vindos do feminismo.
A primeira é formada por grupos e associações que surgiam no amplo movimento de nova cristandade, que representou um primeiro esforço bem estruturado de resposta aos desafios da sociedade secularizada, de valorizar as tarefas terrestres à luz da fé, e de situar melhor a Igreja no mundo moderno. Os/as leigos/as adquirem função própria: cristianizar a sociedade, edificando uma nova cristandade. Floresceram, então, incontáveis associações e movimentos de cristãos/ãs leigos/as. Dentre os quais, encontram-se inúmeras associações femininas que também representam um primeiro esforço de resposta aos desafios do feminismo. São movimentos que se preocupam em promover o feminino cristão em todos os âmbitos da sociedade e da Igreja.
A segunda é formada por múltiplos e distintos grupos, associações, movimentos com características mais feministas; e, teologicamente mais renovadoras. Atuaram em prol da emancipação e libertação da mulher, e da igualdade entre os sexos, na Igreja e na sociedade. Entre eles destacamos como exemplo: No âmbito protestante. Em fins do século XIX, um grupo de mulheres norte-americanas, liderado por Elizabeth Cady Stanton, que se reunia para examinar todas as passagens da Bíblia relativas à mulher, interpretando-as à luz da nova consciência que a mulher adquiria de si. Desses encontros teve origem a Bíblia da Mulher (Woman 's Bible), publicada em duas partes, em 1895 e 1898, respectivamente. A obra, que na época suscitou muitas discussões polêmicas no mundo protestante, é considerada um marco importante na história da Teologia Feminista. Já nos fins do século XIX, surgem as diaconisas nos Estados Unidos e na Europa. Ao largo do século XX, aumentam suas reivindicações, exigindo estudos de teologia, acesso ao sacerdócio; e, em geral, mais poder nas Igrejas. E a partir de 1930, as mulheres foram sendo ordenadas em diferentes confissões protestantes.
Fiorenza ressalta que no âmbito católico, uma das primeiras associações feministas católicas mais conhecidas é a "Aliança Internacional Juana D' Arc" (1911), fundada na Grã-Bretanha e que se espalhou por muitos países em todos os continentes. O movimento se propunha garantir a igualdade dos homens e das mulheres em todos os campos, embora se mostrasse reticente em relação a alguns pontos defendidos por certos grupos, sobretudo as propostas de anticoncepção e aborto. Isto supôs certo enfrentamento. Desde cedo, o grupo percebeu que a igualdade na Igreja implicava em nova linguagem religiosa, por isso, usava como sinal de reconhecimento o lema: "Orai a Deus: Ela vos ouvirá". Dada a mudança de linguagem em relação à mulher e a Deus, os escritos do movimento também são considerados precursores da Teologia Feminista.
Na metade do século XX no limiar do neofeminismo, um dos focos do feminismo cristão, especialmente nas Igrejas protestantes, foi o movimento pela ordenação de mulheres[2], que alcançou um resultado significativo: na reunião de 1958 do Conselho Mundial das Igrejas, de 168 grupos, 44 admitiam ordenar mulheres. Nessa época, surgem os Estudos da Mulher (Women 's Studies) que se estabeleceram nas universidades e tinham como objetivo conhecer melhor a vida e a situação das mulheres na história - revisando e re-interpretando a versão "oficial" narrada por homens - e aprofundar as distintas disciplinas científicas e humanistas a partir da ótica feminina.
Nos anos 60, os movimentos de libertação da mulher, principalmente nos Estados Unidos e em países europeus, atacaram fortemente as Igrejas, especialmente a católica, por considerar que impedia a libertação da mulher; por outro, influenciaram o surgimento de múltiplos grupos na Igreja. Também influíram para a introdução da reflexão feminista em muitos grupos de mulheres voltados para o compromisso cristão na sociedade. Nesses países, se multiplicaram as reivindicações para a ordenação das mulheres e para que elas obtivessem mais poder nas Igrejas. Nesse contexto, emerge a consciência da necessidade de uma mudança mais radical, para que a promoção da igualdade não resultasse na promoção do feminino tradicional, ou na assimilação das mulheres numa instituição patriarcal.
A luta pela ordenação se torna, então, uma questão ambígua: de um lado, coloca em evidência a falta de paridade e de reciprocidade na Igreja, daquela igualdade que permitiria também às mulheres assumir os vários âmbitos de governar, tomar decisão e administrar todos os sacramentos. De outro lado, mostra que o problema eclesial mais profundo está no sacerdócio clericalizado, na distinção entre clero e laicato, na hierarquia assim como é estruturada. E, por isso, a admissão das mulheres, na atual estrutura clerical, em vez de resolver as contradições existentes na Igreja, acabaria agravando-as. “Por conseguinte, não se defende a ordenação de mulheres nas estruturas presentes, mas somente no conjunto da promoção de transformações psicológica, estrutural e teológica da Igreja”[3].
Na Igreja Católica e Protestante da América Latina, a partir dos anos 70, muitas mulheres cristãs respiraram os ares do feminismo influenciadas em grande parte pela Teologia da Libertação que privilegiava as vozes marginalizadas social e historicamente como objeto de sua expressão teológica. Juntamente com preocupações pela libertação no âmbito social, político e econômico trouxeram para as comunidades preocupações pela libertação da mulher, questionando as relações, as instituições, e a linguagem religiosa e teológica.
No Brasil, na medida em que mulheres cristãs se engajaram em movimentos sociais libertários, contra a pobreza e a marginalização, e em favor de melhoria nas condições de vida, muitas delas também tiveram contato com movimentos entrelaçados com o feminismo, e trouxeram para as comunidades, juntamente com as questões sociais, questões de gênero, na prática e na linguagem. Tanto o feminismo popular como o feminismo mais ligado a universidades ou a outros centros de pesquisa, influíram na vida de muitas mulheres na Igreja.
Segundo Elizete da Silva em seu texto sobre “Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia”,[4] Na Comunhão Anglicana, as mulheres começam a ser ordenadas no ano de 1944, em Hong Kong, na China, quando a primeira mulher a ser escolhida pela Igreja e chamada ao Ministério é admitida a esta Sagrada Ordem por meio da imposição das mãos de um Bispo. Foi a Reverenda Li Tim Oi. Em 1974, a Igreja dos Estados Unidos, em Filadélfia, ordena onze mulheres ao Presbiterado. E hoje ordena mulheres ao Episcopado.
Na Diocese Sul-Ocidental, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil discutiu e recomendou a ordenação no ano de 1977, com o apoio das mulheres que participavam da então Sociedade Auxiliadora (hoje UMEAB – União de Mulheres Episcopais Anglicanas do Brasil). Mas a aprovação pelo Sínodo Provincial somente aconteceu no ano de 1984. E em 1985, começou-se a ordenar mulheres na Província Anglicana do Brasil, na Diocese Sul-Ocidental.
Ressaltamos que foi esta diocese a pioneira na discussão e encaminhamento da matéria, quando no ano de 1973 no concílio diocesano, reunido em Santana do Livramento, ouviu no relatório episcopal D.Plínio Simões dizendo que:
“há mais de 35 anos a Comunhão Anglicana estudava o assunto, e as mulheres já estavam demonstrando impaciência ao observar que os homens continuavam retardando uma decisão positiva em face de tão importante tema para o futuro do Cristianismo no mundo”. [5]
E anunciou a realização de um painel sobre a ordenação de mulheres durante o Concílio. O painel ocorreu na 2ª sessão, e por unanimidade foi aprovado que o Concílio se dirigisse ao Sínodo solicitando o estudo aprofundado da ordenação de mulheres ao Sagrado Ministério. Na sessão seguinte, o revd. Jubal P. Neves, que havia pregado no culto dedicado aos jovens da noite anterior, solicita que sejam divulgados estudos sobre o Ministério Feminino. E em 6 de agosto de 1974, é apresentado o famoso “Parecer Sul-Ocidental” a respeito “das mulheres e as Ordens Sacras”, assinado pelos Revdos. Orlando Oliveira, Jubal Neves e Clovis Rodrigues, e que encerra citando o Cônego Charles Raven: “Se uma mulher foi capaz de gerar o Logos Encarnado por que não é capaz de celebrar os mistérios do Seu Corpo e Sangue?”
“Estou convencido de ter chegado a hora de todos nós estudarmos mais seriamente este assunto, não pelo receio de não podermos contar mais com vocações entre os homens para o ministério sagrado, mas por considerarmos flagrante injustiça negarmos à mulher o direito de aspirar a esse ministério”. [6]
Embora o parecer Sul-Ocidental tenha sido promulgado em 1974 a primeira ordenação feminina só ocorreu na IEAB em 1985 mais de uma década depois quando a então Teóloga leiga Carmen Etel tornou-se a primeira reverenda da América latina.
A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil é uma Igreja Histórica de primeira geração e a denominação protestante mais antiga a se instalar no Brasil. Há duas décadas decidiu ordenar mulheres ao sacerdócio o que abalou significativamente o pacto de comunhão com a Igreja Católica Romana e causou grande impacto na maioria das Igrejas Protestantes aqui no Brasil
Quando surgiu a questão da ordenação das mulheres na Comunhão Anglicana, o Sumo Pontífice Paulo VI, em nome da sua fidelidade o encargo de salvaguardar a Tradição apostólica, e também com o objectivo de remover um novo obstáculo criado no caminho para a unidade dos cristãos, teve o cuidado de recordar aos irmãos anglicanos qual era a posição da Igreja Católica[7]
"Ela defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais. Estas razões compreendem: o exemplo - registado na Sagrada Escritura - de Cristo, que escolheu os seus Apóstolos só de entre os homens; a prática constante da Igreja, que imitou Cristo ao escolher só homens; e o seu magistério vivo, o qual coerentemente estabeleceu que a exclusão das mulheres do sacerdócio está em harmonia com o plano de Deus para a sua Igreja"[8]
Segundo Otto[9] os místicos que fizeram a experiência do sagrado o descrevem como mistério terrível e fascinante, que desperta no crente múltiplos sentimentos. Para este autor, o sagrado apresenta‑se como um mistério. Isto é, o não manifesto, o extraordinário e o insólito.
“É um mistério tremendo, que suscita no crente sentimentos de temor e tremor. Mistério em que se manifesta uma absoluta potência e alteridade: a magestade, diante da qual o fiel percebe que é somente pó e cinza. Mistério em que se manifesta uma absoluta energia, vitalidade, paixão. É também um mistério fascinante, que atrai por trazer consigo o amor, a misericórdia, a piedade, o conforto. É um mistério admirável, que suscita no crente sentimentos de maravilha, estupor, surpresa, desconcerto.”[10]
A partir da concepção de sagrado apresentada por ele, não é difícil compreendermos o significado dado pelas pessoas ao fato de poderem ou não se identificarem com suas entidades sagradas. No caso das mulheres, na tradição religiosa cristã, lhes foi permanentemente negada a possibilidade de identificação com o sagrado: a divindade se manifestou à humanidade em forma de homem, Jesus, a tradição da Igreja Católica e protestante tem colocado permanentemente a possibilidade de representar o sagrado nas mãos masculinas. Os sacerdotes, que são homens, não só têm acesso à manipulação do sagrado através dos rituais dos sacramentos, como também eles próprios são tidos pelos crentes como espécies de sagrados.
Entendemos que as relações de Gênero e Poder estão intimamente relacionadas e são fundamentais enquanto categorias de analises metodológicas para este trabalho. Considerando que na pós‑modernidade colocou em cheque nossa vontade de verdade, como afirma Foucalt em seu texto sobre “A Ordem do Discurso”[11] legando-nos a consciência da perda da plausibilidade das grandes verdades, permitindo assim o aparecimento de diversas formas de interpretar e compreender a sociedade, analisando‑a sob diferentes ângulos tornou possível a percepção de diferentes elementos que compõem as relações sociais, que já estavam presentes na sociedade, mas que permaneciam ofuscados pelas grandes narrativas.
Entre os diferentes elementos que compõem a sociedade e que estão recebendo a merecida atenção das ciências e dos movimentos sociais atuais estão as relações de gênero. É importante lembrar que estas relações não se dão de forma isolada das relações de classe e de raça, mas também não são uma mera variante destas.
A religião com seus símbolos, também se faz na teia das representações compartilhadas por uma sociedade. A construção simbólica do gênero e da religião se fundam nas representações sociais. As representações sociais são urna forma de conhecer e conceber a realidade social, constroem significados comuns à uma sociedade. Elas falam de etinia cultura, de uma concepção ou visão de mundo ou de intersubjetividades que se constituem numa trama social de indivíduos produzidos historicamente, num eterno compartilhar. 0 outro é sempre a minha referência, pois é na alteridade que as representações sociais se formam.
Notas
[1] FIORENZA, Elizabeth. Discipulado de Iguais. “Uma Ekklesia – logia feminista crítica da libertação” Tradução de Yolanda Steidel Toledo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p106
[2] Idem,p107
[3] Idem, p110.
[4] SILVA. Elizete da. Cidadãos de Outra Pátria. Anglicanos e Batistas na Bahia. Tese de Doutorado. USP. Faculdade de Fillosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. São Paulo, 1995.
[5] Dom Plínio, nesse mesmo relatório (pp.26-27 das Atas do 24º Concílio) afirma
[6] pp.26-27 das Atas do 24º Concílio
[7] Carta Apostólica Ordinato sacerdotalis do Papa João Paulo II Sobre a Ordenação Sacerdotal Reservada Somente aos Homens. Publicada em 22 de maio de 1994.
[8] Idem.
[9] Rudolf Otto, O sagrado, S. Bernardo do Campo, Imprensa Metodista/ InstitutoEcumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985.
[10] Idem
[11] FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. .p15