sexta-feira, 15 de julho de 2016

Testemunho da IEAB sobre a Missão Ecumênica aos Povos Indígenas


Nossa Igreja esteve presente na primeira Missão Ecumênica junto aos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. O Reverendo Luiz Gabas foi representando a Comissão Nacional de Incidência Pública e compartilha conosco sua experiência quando esteve lá em outubro de 2015.
Missão Ecumênica em solidariedade ao Povo Guarani Kaiowá e ao CIMI
Sob a coordenação do CONIC, CESE e CEBI, organizações ecumênicas e Igrejas se juntaram para a Missão Ecumênica em solidariedade ao Povo Guarani Kaiowá e ao Conselho Indigenista Missionário Brasileiro nas cidades de Campo Grande e Dourados, Mato Grosso do Sul, nos dias 7 e 8 de outubro de 2015. Éramos três os anglicanos presentes: o Bispo Flávio Borges Irala representando o CONIC Nacional, a Reverenda Magda Pereira o CLAI Brasil e eu, Luiz Carlos Gabas, a Igreja Episcopal  Anglicana do Brasil, por meio da Comissão de Incidência Pública. A violência contra os povos indígenas que habitam o Mato Grosso do Sul é secular. Tem se acentuado nos últimos tempos com o avanço do agronegócio que vê a terra como mercadoria, e não como mãe geradora de vida. Dentre esses povos indígenas, os mais sofridos são aqueles que habitam o chamado Cone Sul (municípios de Campo Grande, Dourados, Ponta Porã, Maria João, etc..).  Sofrem os Terenas, sofrem outros povos, mas muito mais o Povo Guarani Kaiowá. Sob pressão e constantes ameaças, tem de sobreviver em pequenos espaços territoriais. A densidade demográfica inviabiliza qualquer possibilidade de qualidade de vida e impossibilita a produção de alimentos suficiente para toda população. As áreas ocupadas já estão degradadas, e nelas não há espécies animais e vegetais que possam contribuir na suplementação alimentar. As fontes de água estão contaminadas pelos agrotóxicos do agronegócio e pelos dejetos das cidades.  Alem do mais, os fazendeiros bancam uma milícia armada que age impunemente nos municípios que compõem o Cone Sul. Homens fortemente armados vão às comunidades Guarani Kaiowá com a clara intenção de intimidação. Fazem disparos, agridem, humilham homens e mulheres…  O relato de duas mulheres na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul retratam essa triste e real situação de violência: “De noite, homens armados invadiram nossos barracos. Mataram meu irmão… Feriram o cacique… Me arrastaram para longe com uma arma apontada para a cabeça… Fizeram ameaças, e depois cortaram meu cabelo…”
Campo Grande – 7 de outubro

Na Procuradoria Federal ainda de manhã a Missão Ecumênica foi recebida em Audiência Pública na Procuradoria Federal do Estado do Mato Grosso do Sul. Um jovem e atuante Procurador Federal e defensor da causa indígena, Emerson Kalif foi quem nos recebeu. Costuma fazer visitas às comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul.  Conhece bem a realidade desses povos tão sofridos. Eu e os outros presentes, não imaginávamos ver alguém do meio jurídico ir às lágrimas ao falar do drama indígena. E nós vimos. Na Assembleia Legislativa Recentemente foi instalada na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul uma CPI contra a atuação profética do CIMI no Estado do Mato Grosso do Sul. A autora da CPI que contou com a adesão da bancada ruralista é a Deputada Mara Caseiro do PTdoB. Ocupar a Assembleia Legislativa do Estado do Mato Grosso do Sul talvez tenha sido o evento mais significativo da Missão Ecumênica. É ali na Assembleia, e a partir dela, que são tomadas as decisões que incidem sobre a vida do povo sul matogrossense. Os indígenas Guarani Kaiowá representantes das diferentes Tekoras (território= terra= espaço vital de preservação da vida, da cultura, da língua e da religiosidade) que compõem o Cone Sul matogrossense, corajosamente puderam expressar sua dor, sua luta e sua esperança de dias melhores cantando, dançando e denunciando as atrocidades que são cometidas contra eles.  Respondendo aos que propuseram e assinaram a CPI do CIMI (Mara Caseiro do PTdoB, Zé Teixeira do DEM, Paulo Corrêa do PR, Lídio Lopes do PEN, Ângelo Guerreiro do PSDB, José Carlos Barbosinha do PSB, George Takimoto do PDT, Onevan de Matos do PSDB, Márcio Fernandes do PTdoB, Eduardo Rocha do PMDB, Maurício Picarelli do PMDB, Antonieta Amorim do PMDB e Beto Pereira do PDT), os quatro deputados do PT, liderados pelo Deputado Pedro Kem ,que compõem a oposição na Assembleia Legislativa propuseram a CPI do Genocídio Indígena.  Nos últimos doze anos foram assassinatos 390 indígenas, e 585 deles cometeram suicídio.A transmissão via internet do Ato Ecumênico na Assembleia Legislativa para diferentes países permitiu a proposição de um boicote ao comércio da carne, da soja e do milho que são produzidos no Mato Grosso do Sul. Há notícias de adesões tanto nos Estados Unidos da América como em países europeus. Ruralistas, políticos e empresários do estado estão preocupados com a possibilidade do boicote, e o que ele possa trazer de prejuízos aos cofres do estado.
Dourados – 8 de outubro – Nossos olhos viram, nossos ouvidos ouviram…
Antes de partimos em visitas às áreas ocupadas por comunidades Guarani Kaiowá no município de Dourados, um motivador momento de espiritualidade regado a orações, cânticos e danças Guarani Kaiowá.
A primeira das comunidades a nos receber é liderada por uma velha senhora, Dona Damiana. Cerca de vinte pessoas vivem sob barracas de lona à margem de uma rodovia muito movimentada que liga Dourados a Ponta Porã. A precariedade dos barracos revela a precariedade da vida dessa gente que vive espremida numa pequena área tradicional, recentemente re-ocupada. Três cemitérios comportam os corpos de crianças, jovens e adultos vitimados por atropelamentos, muitos deles suspeitos. Acolher bem aos visitantes e partilhar a comida são dons sempre presentes nas comunidades Guarani Kaiowá, porém, Dona Damiana pediu desculpas por não poder oferecer nada aos visitantes. Estão passando fome, e os poucos pés de mandioca não seriam suficientes para alimentar a todos.  Ela e o filho foram contundentes nas palavras: “Daqui não sairemos. Essa terra é nossa. É dos nossos ancestrais… Que venham com uma retro-escavadeira, que abram um grande buraco, que nos matem a todos e que  nos enterrem …”
A segunda comunidade visitada, bem maior, e com uma melhor estrutura foi a APYKAI. Na porteira fomos recebidos por um grupo que nos acolheu e conduziu à entrada da Casa de Reza. Conforme o costume Guarani Kaiowá diante da CHIRU, (lembrei-me da “Arca da Aliança” que ia sempre à frente do povo de Israel) foram então entoados cânticos e danças. Em seguida, adentramos todos à Casa de Reza e em seguida foi servido o almoço oferecido pela comunidade aos visitantes. Depois, de novo em torno da CHIRU,  sob a coordenação do jovem cacique Ezequiel  mais cânticos e danças…  Alternadamente, crianças, jovens e adultos fizeram falas contando a história do seu povo… Falaram também do que experimentam diariamente: exclusão, opressão, preconceito e perseguições… Recentemente a comunidade foi vitima de uma violenta ação de milicianos que fizeram uso de armas de diferentes calibres… Embora assustadas e com medo, as crianças e os jovens diziam ser necessário a continuidade da luta. Resistir, e morrer se preciso for, para manter a TEKORA e preservar os costumes, a língua e a religiosidade. A terceira e última estada foi na TEKORA GUYRA KAMBY’I.  Conforme o costume, fomos recebidos com muitos cânticos e danças. As famílias residem em casas que no passado estavam a serviço de uma missão evangélica alemã. O cacique Joel e outras lideranças fizeram narrativas da realidade que experimentam ao longo destes anos. Externaram o quanto está difícil ser indígena… As perseguições e violências que experimentam no dia-a-dia… As ameaças que são comuns… A resistência Guarani Kaiowá… Jovens e adultos disseram:  “Se for preciso a gente morre… É preferível morrer do que deixar essa terra que é nossa… Nossos pais, nossos avós, nossos bisavós, nossos antepassados viveram e morreram aqui…Aqui, queremos também ser enterrados… Continuar com nossas tradições…”
“NHANDERÚ mandou dizer: a hora é essa.”
Todos nós que tivemos a oportunidade de participar da Missão Ecumênica nos sentimos ainda mais comprometidos com a causa indígena.  Foi mais que providencial que ouvíssemos os relatos indígenas e víssemos a realidade dessa gente tão sofrida. Creio que como Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, profética na sua ação, seria interessante que assumíssemos algumas demandas:- Externar no Brasil e no exterior, através de uma carta denúncia, o que vem acontecendo com os povos indígenas, particularmente com o Povo Guarani no Oeste do Paraná e no Cone Sul Matogrossense (estamos presentes nestas duas regiões) ;- Solicitar às Igrejas da Comunhão Anglicana, particularmente aquelas que estão presentes em países que compram carne, soja e milho produzidos no Mato Grosso do Sul que trabalhem em prol do boicote;- Que buscássemos ajuda internacional no sentido de termos alguma pessoa liberada para atuar mais diretamente com a questão da terra (indígenas, sem terra, quilombolas e meio ambiente).
Algumas explicações
Nhanderú – Deus Pai, presente em tudo e em todos. É ele que determina a vida e a caminhada do Povo Guarani. Em cada Tekora há a Casa de Reza, onde os rezadores e a comunidade se reúnem para estabelecer comunicação com Nhanderú. É ele quem mantém preservadas a cultura, a língua, a religiosidade e as tradições do Povo Guarani.
Tekora = terra = território. Espaço vital para a preservação da vida e da perpetuação da cultura, religiosidade, língua e tradições. “Sem Tekora não há vida”, dizem os Guarani.
Chiru = é um símbolo religioso retangular que acompanha o Povo Guarani. É ele quem protege a Tekora contra ventos fortes, tempestades, entidades ruins e o mal. Protege a Casa de Reza. Fortalece o Povo na luta. Se um Chiru é destruído pelo inimigo, outro então é construído. E aí daquele que cometer tal sacrilégio. Me veio à lembrança a “Arca da Aliança” do Antigo Israel que ia sempre junto com o povo.
Cascavel, outubro de 2015. Rev. Luiz Carlos Gabas

* Post reproduzido do Portal do SNIEAB.