“Verdadeiramente o Senhor ressuscitou. Aleluia!”
Estamos a celebrar a Páscoa. Ainda ressoa em nossos ouvidos o que escutávamos ao iniciar a Quaresma: “Lembra-te, ser humano, que és pó e em pó te hás de tornar”. A expressão “ser humano” é bem apropriada. “Humano” vem de húmus, do barro da terra. “Humildade” é perceber a verdade do próprio ser, aceitar profundamente que não passamos de húmus, um punhadinho de matéria sólida mergulhado em quase tudo água, que nosso estágio final é servir de pasto a plantas e animais, ao tornarmo-nos de novo barro da terra.
Agora, a Páscoa nos chega para tudo subverter. Somos seres de eternidade. “A vida não nos é tirada, mas transformada e, desfeita esta morada terrena, nos é dada nos céus eterna habitação”. Mas onde se situam os céus¿ Facilmente imaginamos que estão no alto, além das nuvens. E assim suspiramos como exilados, ou desejosos de deixar “esta morada terrena” para fugir de toda agrura e dor, ou, o mais das vezes, agarrados a ela como a única garantia que temos de estar vivos porque tudo o mais seria incerteza e, para muita gente, só fantasia.
Ora, a Bíblia nos diz que em Jesus foi-nos revelado que não há fronteira entre céu e terra, pois o céu é Deus e Ele está conosco, o céu é entre nós, pode ser aqui e agora. Quantas vezes dizemos a pessoas que amamos: “Com você eu estou no céu”. É justamente isto, o amor cria o céu e parece que nada mais nos falta. Por isso, o Apóstolo São Paulo tem a ousadia de dizer que “nós já estamos assentados nos céus”, pois já estamos na companhia de Deus. “Nossa vida está escondida com Cristo em Deus”. Para além das aparências da morte e do fim, a mensagem do evangelho segundo São Marcos nos fala em tom intensamente poético: “Passado o sábado (entenda-se, o último dia)… no primeiro dia da semana, de madrugada, elas (as mulheres) foram ao túmulo ao nascer do sol”. Jesus, como sol que se levanta, rompe as trevas da madrugada e inaugura o primeiro dia do novo tempo, e de repente se faz ver no jeito de um jovem, “sentado à direita” (do Pai), luminosamente vestido de branco.
A partir d’Ele, “como primícia dentre os mortos”, diz-nos São Mateus, a ressurreição começa a ser possível, a utopia proclamada pelo profeta Ezequiel (cap. 37) começa a fazer-se realidade: ossos secos, espalhados por interminável vale deserto, se erguem “como inumerável exército do Senhor”, exército que é o povo reanimado de sua depressão e desespero, levantado do chão por um Vento divino capaz de arrancar da morte e de pôr de pé multidões. Por isso, São Lucas faz o mensageiro perguntar às mulheres: “Por que buscais entre os mortos Aquele que vive¿” Frase que deixa a entender onde devemos procurá-lo, entre os vivos.
É o que nos mostra na caminhada dos discípulos, possivelmente um casal, de Emaús, na tarde do domingo de Páscoa (Lc 24). Na caminhada de nossas dores, incertezas e frustrações, Jesus está presente, caminhante conosco. Deixa-se convidar a entrar em casa na figura do peregrino ainda desconhecido e estranho, faz-nos retomar as lições antigas das Escrituras e, finalmente, na vida em comunidade, onde se repartem afeto, dons e bens, comida e bebida à mesma mesa, “revela-se presente entre nós no repartir do pão”.
Páscoa é esta descoberta: Ele se revela no partir do pão. Não necessariamente em nossos gestos religiosos e piedosos, mas seguramente em nossos gestos de amor “feito carne” em pão, bebida, vestimenta, saúde, libertação do cárcere, da cegueira, da paralisia (Mt 25).
“Quem ama conhece a Deus, quem é da justiça nasceu de Deus”, diz-nos São João. O caminho, a direção estão a nossa frente. “Já passamos da morte para a vida porque amamos a nossos irmãos e irmãs”. “Não há outro nome no qual possamos achar salvação”, o nome de Jesus é “Caminho, Verdade e Vida”, isto é, com sua vida o caminho da vida está dado: só a vida em comunidade salva, o individualismo é desvio para a solidão do sepulcro, é morte, mesmo que ainda tenhamos alguma aparência de viver. A Comunhão Anglicana traduz vida comunitária em cinco palavras que são como chave para a caminhada da Igreja: Dignidade, quando a pessoa descobre que em Cristo é livre, é nova criatura, já não se pode deixar subjugar por ninguém; Solidariedade que se manifesta no serviço de amor a quem está em necessidade; luta pela Justiça para transformar as estruturas injustas da sociedade; compaixão e Cuidado para com todos os seres da criação para que a vida seja salva e renovada na terra… assim será possível estabelecer a Paz, mais outro nome de Deus na Bíblia, Xalôm, plena felicidade, desde o pão até a alegria de viver sem medo.
Para isto é que fomos batizados em Cristo, sepultados em Sua morte, abandonando no sepulcro nosso “corpo de morte”, o ser humano da vida antiga já passada, para viver como novas criaturas. Viver num novo mundo, de novos valores e de novas relações, criar o céu e já sentir-nos “assentados nele”.
Páscoa é anúncio de que a utopia da vida comunitária é possível, o amor é possível e tem força para nos reunir num só Corpo, pelo Espírito que sopra e poderosamente levanta do chão nossos ossos secos, fazendo nascer “novo mundo, possível, necessário e urgente”, reinado de Deus entre nós.
“Verdadeiramente o Senhor ressuscitou. Aleluia”. Feliz e santa Páscoa!
Recife, 07 de Abril de 2012, Sábado da Vigília Pascal, “Mãe de todas as Vigílias”
Dom Sebastião Armando, Bispo Diocesano