É com emoção que presido a celebração deste Concílio, a grande festa
anual da Igreja. Ao concluir meu ministério de Bispo Diocesano, vejo que
certamente não ajudei vocês em tudo o que seria desejável. O mesmo digo
de vocês, também não me ajudaram no nível desejável. Que Deus aceite
nossa boa vontade e reta intenção, e tenha misericórdia de nossas falhas
e até má vontade. Devo confessar que já começo também a carregar
saudades. Um dos grandes privilégios espirituais de Bispo diocesano é
ter a chance de acompanhar pessoas e comunidades em seu crescimento.
Algumas até desde a infância à idade adulta, ou quase. Ordenar, por
exemplo, pessoas maduras e íntegras. Confirmar pessoas bem preparadas,
quando isto acontece, com comprovado compromisso com a Igreja. Escutar
sonhos, ansiedades, dúvidas, às vezes até pecados; perceber o
amadurecimento no desempenho do ministério de Cristo, mesmo admoestar e
corrigir; ter a graça de partilhar da intimidade e do testemunho de
santidade de tanta gente, às vezes até quase escondida entre nós…
unicamente com o desejo de ver as pessoas crescerem e o Evangelho
revelar sua “dynamis” de salvação e santificação.
As leituras bíblicas nos falam de poder, poder de Deus em nós. Não se
trata, porém, de poder como imposição ou força opressiva, mas de poder,
a partir da própria etimologia do termo, como posse do próprio ser,
potência, possibilidade, possível, quer dizer, poder como capacidade e
possibilidade de ser, poder como ser possível, ser futuro, ser para além
do que já se é no presente, ser mais.
O Profeta Isaías nos diz que a aliança de Deus nos concede poder, na
medida em que nos abre a novas possibilidades, gratuitamente. E
acrescenta que a Palavra transformadora é plena de poder, “não volta sem
efeito, sem ter realizado o objetivo para o qual foi enviada”. O
Apóstolo São Paulo ensina que, em nosso ministério, não proclamamos a
nós, mas a Cristo Jesus. Somos servos e servas por causa de Jesus, para
que brilhe o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de
Cristo. Incrivelmente, somos vasos de barro, mas o incomparável poder de
Deus está contido em nós. No Evangelho de São João, já sabemos do
prólogo que temos a autoridade de filhos e filhas de Deus pelo novo
nascimento. Aqui nos explica que, se permanecemos em Cristo, quais ramos
em videira, teremos o poder de frutificar abundantemente, e a
autoridade para pedir o que quisermos e o obteremos de Deus. Essa
possibilidade brota justamente do amor, já que não somos mais servos e
servas, mas amigos e amigas de Jesus e, por meio d’Ele, de Deus. Haveria
poder maior do que ser amigo ou amiga de Deus?
O texto da Epístola aos Hebreus (6, 18b-19a), escolhido para inspirar
nosso Concílio, vai na mesma direção. O autor está a discorrer sobre o
sacerdócio de Cristo, único e definitivo, que termina com toda mediação
humana entre Deus e nós: temos acesso direto ao santuário definitivo que
é o próprio corpo de Jesus entregue como suprema oferta em ato de
perfeita obediência a Deus. Ele é o único sacerdote que oferece o
próprio corpo, isto é, sua identidade pessoal e as relações com o mundo
exterior, e Seu sacerdócio se comunica a nós pela unção da fé, selada no
batismo, enquanto nos tornamos membros de Seu Corpo e, por
conseqüência, participantes de seu múnus sacerdotal. Lembremo-nos da
palavra da Epístola de Pedro: “Vós sois raça eleita, sacerdócio real,
nação santa e povo adquirido, para proclamar as proezas d’Aquele que vos
chamou das trevas à Sua maravilhosa luz” (1Pd 2, 9). É nesse contexto
de pensamento que se insere o texto do capitulo 6, 18b-19a: “Deixamos
tudo para nos agarrar à esperança que nos foi oferecida. A esperança é
como âncora, segura e firme, para nossa vida”. Como diria o profeta
Zacarias,“somos povo cativo da esperança” (Zc 9, 12). É a esperança
nessa nova condição que nos dá firmeza, em outras palavras, nos
capacita, nos dá autoridade de filhos e filhas de Deus, cuja geração é
novo nascimento que não é obra nem do sangue nem da vontade da carne,
nem de seres humanos, mas de Deus (cf. Jo 1,13). É isso o que nos anima,
poderosamente e em primeira pessoa, a assumir a responsabilidade pela
Igreja de Cristo.
O Arcebispo Rowan Williams, em sua derradeira alocução oficial no Conselho Consultivo Anglicano, como Arcebispo de Cantuária, discorreu longamente sobre como se deve conceber a autoridade na Igreja. Começou pela distinção de dois tipos ou aspectos da autoridade. Ao primeiro chamou de “reativa ou corretiva”, para “ligar e desligar”, resolver dificuldades e desatar nós. Poderíamos dizer aqui que se trata da dimensão “carnal”, autoridade enquanto “lei”, no sentido paulino do termo, e, assim, tem a ver com o pecado que nos marca como seres humanos frágeis e degradados, “encurvados”, como diria Santo Anselmo de Cantuária, do século X, avessos a assumir, interiormente e com alegria, a disciplina em função do bem coletivo.
O segundo aspecto, identificou como “autoridade própria de Jesus”,
evidente, por exemplo, no episódio de Cafarnaum, segundo São Marcos 1,
21-28, quando o povo reconhece n’Ele “uma palavra com autoridade”,
intervenção capaz de mudar a realidade de sua vida: “autoridade que
capacita, confere poder (empodera) e age em vista de libertar e desatar
iniciativa das pessoas e dos grupos”.
Segundo ele, não se trata de exercer autoridade para tornar a igreja
instituição mais bem organizada, mas para que “seja verdadeiramente a
Igreja, como Corpo de Cristo”, de tal forma que “nossa fé anglicana
mostre ao mundo que a nova criação é verdadeiramente nova, que a Igreja é
verdadeiramente diferente”. Autoridade que se exerce difusa
horizontalmente, a saber, “dispersa e compartilhada”, mediante
articulações e redes, iniciativas compartilhadas e companheirismo em
missão.
Salientava que “a criatividade das redes é um sinal de que Deus está
provocando em nossa comunhão, intensamente, diferentes maneiras de
colaborar que, naturalmente, não vão resolver nossos problemas de
autoridade, mas, ao menos, nos dizem que Deus não espera,
necessariamente, que resolvamos nossos problemas para capacitar-nos a
ser efetivamente discípulos e discípulas”. E acrescentava: “A pergunta
do julgamento de Deus será sempre simples e clara: “Por que vocês não
anunciaram o Evangelho e não serviram os pobres?” E não nos será
permitido responder: “Tínhamos tantos problemas internos a resolver, que
não havia condições de decidir quem tinha autoridade para se pronunciar
quanto a isso”. Deus espera que sejamos discípulos e discípulas hoje,
não depois de amanhã”.
E foi adiante: “Na Comunhão, um saudável e santo futuro depende de
desenvolvermos mais e mais relações face a face, comunidades de adoração
frente a frente com comunidades de adoração, não documentos escritos
diante de outros documentos escritos, discursos frente a discursos,
antes, família de deus voltada para família de Deus”. Nossa face tem de
estar voltada para nosso único Senhor e para nossos irmãos e irmãs, só
assim será possível estabelecer “relações entre uma comunidade de
adoração e outra, entre uma comunidade servidora e testemunhal e outra”.
Finalmente, enfatizava o Arcebispo, a autoridade capaz de capacitar as
pessoas é a que infunde esperança, difunde nova visão e desencadeia
processos de generoso serviço e mútuo amor. “Deus restaura sua imagem em
nós e nos faz vivenciar a morte e a ressurreição de Jesus e o
derramamento do Espírito, de tal forma que a dimensão mais profunda de
nossa humanidade chega a reviver”.
De fato, autoridade – “auctoritas” em latim, deriva do verbo
“augere”, aumentar , acrescentar, fazer crescer. “Autor” quer dizer o
que acrescenta, o que faz crescer. Dessa concepção de autoridade decorre
a alegria da esperança, que nos comunica segurança para viver de
maneira nova na Igreja, i. é, em comunhão, com a garantia de “um
saudável e santo futuro”, como dizia o Arcebispo.
Uma igreja onde seja hábito o respeito às pessoas, a acolhida a
todas, com a restauração da lealdade e da confiança mútuas, com
interesse de conhecer-se mais e deixar-se enriquecer pelo testemunho de
outrem, possibilitando-se, deste modo, o trabalho em equipe e a pastoral
de conjunto.
Uma Igreja diocesana que se organize sempre mais como rede de
comunidades generosas e abertas ao conjunto da Diocese, à Província e à
Comunhão Anglicana .O que exige que sejam formadas para ser realmente
comunidades anglicanas. Se só nos importa ser “cristãos”, como às vezes
se escuta em nosso ambiente, se não importa e não interessa conhecer,
assimilar e fazer conhecer o Anglicanismo, sua historia, sua tradição,
seu jeito de ser, sua teologia e sua liturgia, para que existimos como
família particular e distinta na Igreja cristã? Seria apenas espaço
“inclusivo”, sem fronteiras, o que pode equivaler a ausência de
critérios, para acolher pessoas descontentes com o autoritarismo e o
moralismo de outras Igrejas? Acolher pessoas divorciadas, por exemplo, e
pessoas que sabem que não serão excluídas por seus comportamentos
alternativos na sociedade , como se se tratasse de uma Igreja que pouco
exige e custa pouco, Igreja “light”, como se diz hoje, Igreja de “graça
barata” onde não se pagaria o preço do discipulado de Jesus, como diria
Bonhoeffer, onde a gente se sente bem, mas não sabe bem o que seja e nem
se interessa por saber?
Uma igreja em que a compreensão do ministério seja no plural, como
roda de dons e serviços, ministério compartilhado que ponha o clero e as
pessoas leigas em relação horizontal de irmandade e complementaridade.
Para isso, precisamos de clero bem formado, seguro de si, livre,
portanto, de mentalidade clerical, de personalismo, de autoritarismo e
centralismo, e, ao mesmo tempo, de um laicato bem preparado, sabendo a
que veio, com profundidade espiritual, boa educação cristã e até
formação teológica , conhecimento da estrutura da igreja, e capacidade
metodológica para se portar de maneira responsável e adulta na
comunidade eclesial, com plena consciência de seus deveres e direitos,
inclusive o de discordar e propor alternativas.
Uma igreja em que, na convivência comunitária, celebrar a liturgia
seja expressão da vida e da lida, e chamado profético a prosseguir com
lucidez e coragem no seguimento de Jesus; ouvido atento a discernir a
palavra de Deus na vida, com a ajuda do estudo permanente, intenso e
inteligente da Bíblia; abertura para assimilar a espiritualidade
anglicana, mediante o conhecimento da história, do jeito de ser e de se
organizar da Igreja, desde o nível local até o internacional, passando
pelo efetivo compromisso com a Província.
Finalmente, uma Igreja semelhante a Jesus, com os olhos voltados à
realidade e às necessidades das pessoas e da sociedade, na qual nossa
visão do conjunto da vida seja cada vez mais “a partir dos pobres”, como
nos evangelhos. Daí, será possível pôr no centro da vida da Igreja a
diaconia social e política, enquanto expressão do amor de Deus em nós,
traduzido em serviço. Dizia o Arcebispo, a pergunta será sempre simples e
clara: “Vocês anunciaram o Evangelho e serviram os pobres¿” Assim,
ainda que não sejamos multidão, teremos chance de ser relevantes na
sociedade, para glória do Evangelho e maior bem do povo.
Que, nesta trilha de exercício da “autoridade dispersa e
compartilhada”, “autoridade que capacita e confere poder, e age em vista
de libertar e desatar iniciativa das pessoas e dos grupos”, cheguemos a
ter “um saudável e santo futuro”, como nos sugeria o Arcebispo. E que
prossigamos “seguros em Cristo e firmes na esperança”!
Recife, 27 de Abril de 2013
+ Sebastião Armando, Recife