POR GRAÇA DE DEUS E ELEIÇÃO DO POVO, BISPO DA IGREJA CATÓLICA
DE CRISTO, NESTA DIOCESE ANGLICANA DO RECIFE, DA IGREJA EPISCOPAL
ANGLICANA DO BRASIL, POR OCASIÃO DO ADVENTO DE 2012, ANNO DOMINI, SOBRE
ESPIRITUALIDADE E RESPONSABILIDADE COM DEUS
Ao Reverendo Clero, ao Ministério Pastoral Auxiliar, às Lideranças Leigas da Igreja e a todo o querido Povo de nossa Diocese, Saudação e Bênção de Deus
Introdução
Estamos quase a
concluir o período do Advento. Espero que estejamos a responder com
empenho ao apelo que a Liturgia carrega consigo, nesta linda quadra do
Ano Cristão, que nos prepara a celebrar o Natal de Jesus.
Advento coincide com fim de ano, tempo de avaliação e de concentrar-se na oração e na leitura da Bíblia,
sobretudo nas profecias. Natal aponta para novo começo. Com Jesus, Deus
assume a responsabilidade de se comprometer com “um novo mundo
possível”. Seu Espírito nos convoca a assumir com Ele nossa própria
responsabilidade. Neste clima de recolhimento para avaliação, oração e
meditação da Bíblia, venho propor que reflitamos sobre espiritualidade e
responsabilidade.
1. O que é espiritualidade?Não se trata
simplesmente de ser pessoa religiosa, ou dizer que crê em Deus. Antes de
tudo, espiritualidade é sentir-se motivado(a) por um "espírito" que
inspira e orienta toda a vida. Assim, equivale a um estilo de vida ou
jeito de ser pelo qual cada pessoa acha o sentido da vida.
Concretamente, traduz-se no conjunto de valores que informam a
personalidade, isto é, no conjunto daquilo que julgamos apreciável, que
vale a pena como motivos de viver e morrer. Pela prática existencial
desses valores, fazemos experiência de um “espírito” que, como rajada de
vendaval ou “brisa leve” (cf. 1Rs 19, 12) nos impele a caminhar, ou,
como inspiração, nos nutre, motiva e renova as forças para prosseguir
adiante. É pela prática de nossas ações que transparecem os valores que nos guiam e por estes se revela “de que espírito somos”.
Segundo a Bíblia, no dia a dia, manifesta-se que há dois caminhos
fundamentais de espiritualidade. Um, é a pessoa abrir-se a escutar o
Mistério da Vida, a Bíblia fala aqui do "Deus vivo", acolher a vida como
dom e perceber que o dinamismo profundo da realidade é comunhão; daí,
passa-se a responder mediante o amor que se traduz em serviço e
partilha, manifestação da liberdade, a qual, antes de tudo, é ir além
de si mesmo, ultrapassar-se, transcender-se, rompendo a prisão no
próprio eu e abrindo-se às outras pessoas e à realidade maior do mundo e
da história. Só é livre quem ama, e liberdade é, antes de tudo, ser
livre de si mesmo, dos próprios caprichos para entregar-se sem medo de
perder-se (cf. Mc 8, 34-37). O outro caminho é fechar-se em si mesmo(a),
julgando-se o centro do mundo, narcisismo, em termos psíquicos, em
termos bíblicos, idolatria, Pois o ídolo não passa de imagem, reflexo de
nós mesmos(as), expressão de nosso próprio vazio, projetado
ilusoriamente como poder, tão visível hoje no culto às coisas, como se
vê por exemplo, na importância que adquire o símbolo do automóvel e no
culto da aparência em geral. Hoje se fala de “cultura do espetáculo” ou
“da amostração”, como dizem as crianças, o mesmo que dizer, da
imaturidade e miséria interior.
2. Responder é tornar-se responsável
A espiritualidade da liberdade, própria da pessoa, é necessariamente
da responsabilidade. Por isso, a Bíblia começa dizendo que o ser humano é
“imagem e semelhança de Deus”. (Gn 1, 26-31). É o mesmo que dizer que
somos pessoas. Somos espírito, como Deus. Mas, "encarnados", como dizia o
filósofo francês, existencialista e cristão, Gabriel Marcel, isto é, em
íntima relação com a materialidade do mundo. Somos espirituais e, ao
mesmo tempo, totalmente seres do mundo material. A matéria do mundo faz
parte de nossa própria pessoa e da pessoa de Jesus, o filho de Deus,
imagem de Deus por excelência (cf. Fl 2, 5-11). Por isso,
espiritualidade tem tudo a ver com nossa materialidade. Na verdade, o
que há de mais espiritual, por incrível que possa parecer à primeira
vista, são sexo, o máximo da relação interpessoal, e dinheiro, símbolo de nossa relação com as coisas. Nesses dois aspectos, materiais e básicos da vida, revela-se como exercemos o poder, ou seja, qual é nossa qualidade espiritual, em outras palavras, nossa capacidade de amar.
3. Responsabilidade pelo mundo criado
"Imagem de Deus", segundo a Bíblia, não quer dizer apenas que temos
traços semelhantes a Deus. É muito mais. O sentido da expressão é que o
ser humano é, no mundo, representante, embaixador ou embaixatriz, para
fazer as vezes do Criador. Deus entregou Seu mundo em nossas mãos. Somos
Sua imagem, por isso cocriadores, enquanto temos poder de produzir
outras pessoas semelhantes a Deus e porque temos o governo sobre o
universo. ("damos nome às coisas”), e a nossas mãos foi entregue cuidar
do jardim de Deus, como mordomos (cf. Gn 2). Jesus nos compara a servos
aos quais foi entregue a administração da “casa” (cf. Mc 13, 33-37).
Daqui nasce nossa responsabilidade econômica e ecológica. Economia vem
de duas palavras gregas, “oikos=eco”(casa) e “nomia” (lei). É a lei da
casa, a ordem ou sistema que estabelecemos para produzir, distribuir,
comunicar e consumir os bens julgados necessários ou convenientes à
sobrevivência e ao bem estar dos seres humanos. Essa lei regula as
relações com a Natureza e entre as pessoas, as chamadas relações sociais
de produção. Não basta, porém, usar dos recursos disponíveis, sem
responsabilidade. O mundo é nossa casa, por isso temos de cuidar e
preservar. Ecologia vem de “oikos=eco” (casa) e “logía” (tem a ver com
lógica), é a lógica da casa, a coerência com o que deve ser. O mundo é
nossa casa e temos de dele cuidar e preservar o ambiente, o meio onde
vivemos. Nossa responsabilidade é usar da criação em nosso proveito, mas
cuidar e preservar para que seja igualmente dom para todas as gerações.
Infelizmente, a lógica da economia hoje esta invertida. Já não se
produz mais para satisfazer as necessidades humanas, a produção segue
seu curso próprio de otimizar a tecnologia e o lucro, e a propaganda se
encarrega de criar e incutir necessidades. Daí a gravíssima ameaça à
vida na terra. A Comunhão Anglicana declara que uma das Marcas da Missão
da Igreja é trabalhar para garantir a vida na terra, preservar e
renovar os recursos da Criação de Deus.
Li recentemente em revista de divulgação científica o seguinte: se
todos os povos quiserem alcançar o nível de vida dos Estados Unidos da
América do Norte, vamos necessitar de cinco planetas terra. Que absurdo o
consumo dos ricos! Nos países ricos, as pessoas, para tomar banho,
gastam água por vinte minutos; se só empregassem dez minutos,
economizariam água para seis milhões de outras pessoas diariamente. Que
impressionante! Os cientistas dizem que as geleiras dos polos estão a
derreter com o aquecimento da terra e os oceanos a subir de nível mais
rapidamente do que se previa. O automóvel se torna sempre mais um
problema: poluição, acidentes, violência no tráfego, extravagantes
gastos viários, imobilidade, estímulo ao individualismo... O lixo urbano
(sem pensar no lixo eletrônico e, mais grave, o atômico) revela cada
vez mais a irresponsabilidade e a loucura humanas. Se algo está errado, e
há muita coisa que está errada, é o caso de dizer com a canção: “Se não
sou dono do mundo, também tenho culpa, porque sou filho do dono”.
Os desafios são enormes, no entanto nossa responsabilidade ética não
se acha à altura para enfrentá-los adequadamente. Como conjunto da
humanidade ainda somos muito infantis, tratamos o mundo e a vida como se
fossem brinquedo para exclusivo uso e prazer. A Palavra de Deus nos
revela que, quando a “saúde” da Natureza passa a depender de nós, até os
menores atos do dia a dia se tornam atos de responsabilidade ética, são
a maneira concreta de responder a Deus e a nossos semelhantes, porque
de cada qual de nós depende vida ou morte. Abrir a torneira para escovar
os dentes, lavar pratos ou tomar banho, ter critérios no uso de
automóvel, decidir como empregar o dinheiro, cuidar do lixo, cuidar do
corpo como templo do Espírito Santo, não poluí-lo com o fumo, o álcool,
as drogas, antes, cuidar dele com alimentação adequada, movimentação e
respiração; não poluir a mente com palavras violentas ou torpes ou
pornográficas (cf. Rm 1, 29-32; Gl 5, 19-21; Cl 3, 5-10; Ef 4, 31-32; 5,
3-5).... não são atos indiferentes, mas reveladores de como assumimos a
responsabilidade para com a criação de Deus, em nós e em redor de nós,
manifestam, na verdade, de que "espírito" somos.
4. Responsabilidade pela sociedade
Não basta ser responsável na esfera da economia e da ecologia. É
preciso assumir responsabilidade também no âmbito das relações sociais e
políticas.
A Comunhão Anglicana nos diz que o chamado de Deus é ainda para
"prestar serviço de amor a quem necessite." E como progredir para que
haja cada vez menos gente necessitada? Responde a Igreja: É preciso
"lutar pela transformação das estruturas injustas da sociedade". E ainda
voltar os olhos para a convivência internacional dos povos,
esforçando-nos por "defender e promover a paz”. A ação social e
política, para tornar possível "outro mundo", é imperativo da fé Crist,
como nos diz claramente o Apóstolo São Paulo chamando-nos a não nos
adaptar às estruturas do sistema deste mundo, mas transformar-nos desde o
mais profundo de nossos sentimentos e pensamentos, para discernir e pôr
em prática a vontade de Deus em nossa vida pessoal e nas relações e
estruturas da sociedade humana (cf. Rm 12, 1-2).
5. Responsabilidade pela Igreja
Deus não nos criou para viver como indivíduos. Somos pessoas, quer
dizer, seres que só se realizam mediante relações. Não apenas temos
relações, somos relações. Sem elas não chegamos a ser gente ou
definhamos e nos destruímos. Daí, só podermos viver de forma coletiva,
em grupos ou comunidades.
Por isso, Jesus edifica a Igreja, povo chamado para congregar-se,
irmanar-se, formar comunhão de vida, mediante o serviço mútuo e a
partilha de dons e bens.
A Comunidade Cristã tem dois aspectos. Somos uma família. Pelo
“anúncio da Boa Nova do Evangelho” sentimo-nos chamados à conversão e
formamos comunidade. É a primeira Marca da Missão da Igreja: Proclamar a
Boa Nova de Jesus em vista da conversão das pessoas. A convivência de
comunhão fraterna, as orações, os sacramentos e a assimilação dos
propósitos de Deus, mediante a intimidade com a Bíblia que nos ilumina,
com o testemunho de vida de pais e mães na fé, para perceber o que Deus
nos diz no hoje de nossa vida, tudo isso nos alimenta e educa, como
rebanho de Deus. É a segunda Marca da Missão: formar comunidades para
que, pela comunhão fraterna, a Palavra e os sacramentos, tenhamos o
alimento que, assimilado, nos forme na “mente de Cristo” para chegar ao
“estado de ser humano perfeito, a medida da estatura da plenitude de
Cristo” (Ef 4, 13). A comunhão fraterna, vivida em comunidade, só
acontece mediante o mútuo serviço, e a partilha de dons e bens.
Além disso, a Igreja também tem uma missão voltada para fora. Deve
anunciar o Evangelho à sociedade, através de palavras e gestos de
restauração das pessoas, das relações e das estruturas de convivência
social. Para que a missão evangelizadora se realize, é preciso que Deus
também possa contar com nossa colaboração (cf. 1Cor 3,9), com a
consagração de nossos dons e bens para o bom êxito de Sua obra.
Na época da antiga aliança, documentada no Primeiro Testamento,
conforme os costumes do tempo, estabeleceu-se, a lei do dízimo, como
expressão da consagração a Deus. Em testemunho de ação de graças por
todas as bênçãos recebidas, restituía-se a Deus dez por cento de todos
os bens, frutos de colheitas e rendas (cf. Dt 14,22-29; 26, 12-15 Hbr 7,
4-10; Ml 3, 6-12).
No Novo Testamento, não se estabelece percentagem precisa. O
princípio é que tudo pertence a Deus e cada qual deve decidir em seu
coração sobre quanto ofertar, com lealdade e generosidade para com o
Senhor. O raciocínio é inverso: não é que dez por cento são para o
Senhor, é que tudo já é do Senhor e cada qual, enquanto mordomo e
administrador, reserve para si o de que necessita. Daí, por que o ideal é
a partilha generosa dos dons e dos bens, para a manutenção da Igreja,
para a promoção da missão evangelizadora e para a restauração da justiça
em favor dos pobres e da paz em prol de todas as pessoas (cf. At 2,
42-47; 4, 32-35).
Como regra prática, a Igreja pedagogicamente, insiste no dízimo. Mas
não é a medida máxima, é apenas uma referência. Para pessoas que dispõem
de mais, seria certamente a medida mínima. Cada qual deve examinar, do
que Deus lhe concede, quanto vai precisar reter para si e suas
necessidades, a partir da consciência de que tudo é do Senhor. Quem
possui menos, dá menos, quem recebe mais, oferta mais. O que mais
importa é que a entrega de dons e bens seja o sinal de nossa consagração
total a Deus e a Sua obra.
O Apóstolo São Paulo traduz bem qual o sentido de oferta financeira,
como expressão de nossa vida consagrada a Deus: “Saibam de uma coisa:
quem semeia com mesquinhez, com mesquinhez há de colher; quem semeia com
generosidade, com generosidade há de colher. Cada qual dê conforme
decidir em seu coração, sem pena ou constrangimento, porque Deus ama
quem dá com alegria. Deus pode enriquecer vocês com toda espécie de
graças, para que tenham sempre o necessário em tudo e ainda fique
sobrando alguma coisa para poderem colaborar em qualquer boa obra,
conforme diz a Escritura: Ele distribuiu e deu aos pobres e sua justiça
permanece para sempre. Deus, que dá semente ao semeador, também dará o
pão em alimento; para vocês multiplicará a semente, e ainda fará crescer
o fruto da justiça que vocês têm. E vocês ficarão enriquecidos de todos
os modos para praticar toda espécie de generosidade, que provocará a
ação de graças a Deus por meio de nós” (2Cor 9, 6-11).
CONCLUSÃO
Neste tempo de Advento convido a mim e a vocês a refletir
profundamente a quantas anda nosso compromisso com a obra de Deus. Qual a
qualidade de nossa responsabilidade pela criação, pela sociedade e pela
Igreja. Qual a largueza de nossa generosidade para expressar a
consagração de nossas vidas inteiramente a serviço da obra do Senhor.
Para que a Igreja seja relevante em nossa região, precisa manter-se e
expandir-se, necessita de fortalecer-se e espalhar-se. A oferta de
nosso serviço e dons, e a partilha de nossos bens são essenciais para
que isso aconteça. O compromisso da contribuição regular é o sinal de
nossa fidelidade, ou seja, encarnação viva da fé. Dinheiro é símbolo das
obras que produzimos com nossas mãos, e, na verdade, fomos enviados(as)
para realizar as obras do Senhor e não para “adorar as obras de nossas
mãos”. Estas devem ser consagradas a Deus como sinal da consagração de
nosso ser desde o Batismo.
Impressiona como o Apóstolo, no breve texto
acima, em que fala de oferta financeira, material, portanto, concentre o vocabulário espiritual típico
do Novo Testamento: alegria, dar, generosidade, amor, graça, boa obra,
justiça e fruto da justiça, dar aos pobres, enriquecer-se para praticar
generosidade, ação de graças (eucaristia)... Nossa Igreja nos ensina que
a condição de “membro pleno” da Igreja só se dá quando somos pessoas
batizadas e confirmadas, participamos com assiduidade do convívio
fraterno, das atividades e da Santa Eucaristia, e ainda contribuímos
regularmente, não só esporadicamente ou em campanhas especiais, doando
nosso serviço, dons e bens para a obra do Senhor.
Queridos irmãos e queridas irmãs, ser Igreja vale a pena se realmente assumimos a condição de crentes com fervor,
para viver, com intensa vibração, a experiência do Deus vivo em nós e
para sentir a comunidade fraterna como dimensão essencial de nosso
próprio ser. Ofertar nosso serviço, dons e bens é o sinal concreto,
corporal, do que queremos ser: Um só em sacrifício para que todas as
coisas sejam sujeitas a Cristo e nós já desde agora a saborear a
experiência de participar do celeste reino, como filhos e filhas de Deus
(cf. Livro de Oração Comum, Oração Eucarística, Rito II). Só assim,
cantaremos com toda verdade do coração o que proclamamos no hino do
centenário de nossa Igreja no Brasil: “Igreja, a gente vive com paixão”!
Assim seja!
Recife, 16 de Dezembro de 2012, Terceiro Domingo do Advento
+ Sebastião Armando, Recife